terça-feira, 15 de dezembro de 2020

0.2

Gastei contigo meus melhores poemas do Pessoa. Gastei contigo aquelas músicas, aqueles filmes, aquelas flores. Gastei contigo longos dez anos. Talvez você tenha gastado comigo também. Apesar que não gosto da palavra “gastar” porque parece que não valeu, sabe? Traz a ideia de arrependimento, e eu não me arrependo de ti. Doeu, sim, é verdade. Cheguei no extremo da loucura onde desejei ouvir tua voz uma última vez, como alguém que está moribundo esperando a morte chegar. Mas você não atendeu, você não ligou. Eu que achei saber tanto de ti, percebi que não sei quase nada. Ou se sei, não quero saber o que sei. 

Cheguei também ao ponto máximo de não conseguir mais te colocar numa redoma bonita. Não que eu te romantizasse, mas acho que nunca tinha visto de forma tão crua a maneira que você foge e esconde e machuca o outro na esperança de se salvar - ilusão, menina... 

Por vezes tenho a sensação - um tanto quanto estupida - de que você pensa em mim. E dou risada sozinha. Não, não é possível, não foi isso que você bateu no peito pra dizer. Uns tempos atrás eu juraria que sim, porque energia é força criadora e, se você pensa em mim, vou também pensar em ti. Bobagens. 

Não sei exatamente porque te escrevo. Talvez porque o Spotify caiu naquela música. Eu nunca tive playlist pra ninguém além de ti. Mas isso você já sabe. Passei o último mês lendo aquele poema do Caio F. que diz algo mais ou menos como: se você ligasse hoje eu diria qualquer coisa. Mas você não ligou. E eu fechei o livro. 

Com os anos, nos tornaremos borrões de um amor e, talvez, nos questionemos se foi mesmo amor. E me assusta olhar tua foto e não mais reconhecer o rosto que um dia amei. Finalmente consegui te ver para além das minhas criações? 

Não brigo mais com a vida: deixo que ela leve o que for necessário. Entrego para que aconteça o que precisa acontecer. Amanhã, não sei. Não sei se um dia te encontro, se nos restou o nunca mais: não sei de nada, e me contento nessa condição. Ah, mas sim, lembro que era bonita tua voz. 

terça-feira, 17 de novembro de 2020

tantos eus.

Não saberia ser diferente do que sou

Um amontado de histórias, amores, dores 

Quem passou, deixou em mim uma marca 

Como um corte de navalha 

Que não dói, mas retalha.

Tudo que amei ficou de mim e em mim 

Como uma fotografia antiga 

Que sempre olho 

Pra lembrar de onde vim. 

Meu coração de poeta 

Cabe tudo:

A vida, a dor, você 

E tantos outros rostos 

Que enxugavam a água 

Que você faz nascer em meu rosto. 

Sem espaço pra mágoas 

Pulsa como vitrola quebrada 

Pausa na mesma música 

Amor as vezes é criança mimada. 

Sobre um amigo distante.

 Lembro de conhecer João por meio de amigos. Algum amigo dele que ficava com uma amiga minha. Ou era o contrário. No começo, a gente se falava pelo msn. Trocávamos músicas, quadrinhos, histórias. A primeira vez que fui papear com João, estávamos em uma cafeteria em Botafogo. Lembro dele me dizendo “café com essência de baunilha nem é café”. Ainda dou risada dessa afirmação banal. Ainda bebo o mesmo café.

João dividiu comigo livros, músicas, cigarros e cafés - sempre reclamando. Enxugava minhas lágrimas enquanto escutava de forma incansável Los Hermanos comigo. Eu ouvia “sétimo andar” em looping. Quando ficava muito difícil, me abraçava e dizia “moça, deixa de bobagens, vamos beber no baixo Botafogo.” 

João parecia índio. Tinha o cabelo lisinho, a barba rala. Usava camisas de flanela que eu dizia parecer o Marcelo Camelo e ele sempre respondia “tudo bem, eu gosto do Camelo”. Eu eram team Amarante. Achava meu coração lindíssimo e me ouvia por horas falando de um coração partido. Sempre atento, sempre paciente. 

João me apresentou Vanguart numa tarde de calor no metro do Rio de Janeiro. Ouvíamos sempre a mesma música: se tiver que ser na bala, vai. João reclamava do meu cigarro e fumava sempre sem estourar a bolinha, e riamos por horas daquele livro ácido - o qual ele me presenteou.

João era arquiteto apaixonado por cinema. Me deu minha primeira claquete, me ajudou a gravar curtas, produziu comigo, dizia que devia fazer cinema, não história. Era apaixonado pelo Glauber Rocha e “Acabou Chorare” dos novos baianos. 

João adorava Roberto Carlos e me fazia ouvir. Eu dizia sempre “vai, esse cara é um cuzao.” E ele respondia “Ju, somos sempre cuzoes, assim é a vida.” Não mentiu. Eu dizia que ele era assim meio clichê, mas eu também era. Talvez até mais.

João era tricolor roxo e quando o Fluminense perdia pro Flamengo, me mandava SMS dizendo “nem vem”. E quando ganhava, era um inferno. Com João comprei uma garrafa de cachaça e bebi na praia de Ipanema, numa noite de quinta-feira, o que me rendeu um porre e vômitos homéricos, enquanto ele segurava o meu cabelo e dizia “porra, Juliana...” 

Achávamos que sabíamos muito. Sobre livros, poemas, cinema, corpos, amores. Ou eu achava? Minha memória me confunde. Acho que eu era uma menininha de coração partido que pagava de badass enquanto João era aquilo que mostrava: repleto de dores e amores. 

João dizia “eu não sei o que você vê nessa menina”, enquanto me passava mais um copo de cerveja. Eu dizia que também não sabia, mas tudo bem, ia passar. João virava de forma irônica e dizia “Chico disse que amores serão sempre amáveis”. João era. Era amável. Não romanticamente, mas era. 

Lembro de perguntar, aos prantos, como ele não me achava alguém ruim, pequena, vil. E ele responder sorrindo “todo mundo erra, e tem gente mais filha da puta por aí que você.” E a gente dava risada de novo, enquanto as lágrimas molhavam meu rosto. 

João sempre se atrasava, e me deixava putissima. Por isso então sempre chegava no rolê com um cigarro, um chocolate. Eu era dificílima na época. Orgulhosa, dolorida. João ficava pacientemente em silêncio até que eu tivesse disposta a falar. João me ensinou a não me esconder por trás do muro - e ele não foi o único, não tiraria o crédito de outros amigos.

A vida, as coisas e os caminhos nos afastaram. Creio que, de toda forma, não ficou mágoa nenhuma entre a gente. Sempre que penso no João, lembro da cara feia ao provar o café dizendo que não, tá errado, isso nem café é. Se hoje escrevo, é graças a ele. Que lia, relia e dizia “sentimental demais....” “faça um blog” “você gosta muito do Caio Fernando”. 

Hoje, queria estar bebendo com João no baixo Botafogo. Sei que contaria tudo, sem receios, sem esconder as partes sujas, e ele diria “a vida é assim, bebe que passa”. Não sei se tive muito tempo pra dizer o quanto fui grata e o quanto amei João. Acho que ele sabe. De qualquer forma, moço, que saudade de ti. Brindo aqui pra ver se passa aquela escuridão - porra de vida! - e acho que você entende. 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 III.

Alfa entra no uber com a certeza quase insana de que deveria ir andando. Encerrar a conversa, se despedir como quem reencontra um antigo conhecido. Mas observa os traços de Beta encostada na janela. Lembra da primeira vez que viu suas tatuagens, o contorno do rosto, as mãos. 

O coração em desalinho.

Beta se vira lentamente e encara com seus olhos de turmalina. Alfa não consegue decifrar. 

- pensei nunca mais te encontrar. - diz Alfa com a voz embargada

- a vida brinca com a gente. 

Alfa pensa com uma certeza banal que Beta escuta seus pensamentos. Teria também escutado todas as vezes que a chamou dentro do quarto, com o cigarro entre os dedos, a garrafa quase vazia? 

Ao chegar no apartamento Beta se sente como quem visita um lugar do passado. Observa o livro, o vinil, as plantas. Quase nada mudou. Lembra do dia que foi embora. Meu Deus, como queria ter ficado. Como queria ter tentado. Queria ter sido. 

- vou perguntar o óbvio, mas quer beber o que? - Alfa pergunta apoiada na porta da cozinha

- uma vodka.

Inesperada resposta. Mas enche os copos com vodka pura e gelo. 

Ao voltar para a sala encontra Beta sentada em seu sofá como uma pintura surrealista. Como essa mulher lhe dói as vezes! Mas entrega o copo na certeza fingida:

- disse que precisávamos conversar.

Beta bebe em silêncio. Queria dizer tantas coisas mas há o orgulho, o medo, a mágoa. Uma névoa que nunca se dissipa da história das duas. Infla o peito:

- sim... eu... queria te perguntar. - Beta diz revirando os gelos no copo.

- pergunte. 

- se eu tivesse ficado, teria sido diferente? conseguiríamos transpassar tudo? teríamos destruído nossa chance?

- nós destruímos de qualquer forma.

- sim, mas e se eu tivesse ficado?

- não tem como saber. 

- isso é uma merda. - Beta puxa com cigarro com o lábio numa mágoa visível. 

- não dá pra chorar sempre pelo o que foi.

- eu não choro mais.

Alfa sabe que não é verdade, mas finge acreditar. Deixa Beta manter a pose de fera ferida e enjaulada. 

- eu fiz tudo que podia pra te esquecer. tudo. te odiei, busquei outras pessoas, amaldiçoei o dia que te deixei chegar perto de mim. não quis te ver nunca mais e ainda assim...

- me encontrou em tudo. - Alfa interrompe com a voz estranhamente suave, como quem também passou por isso e se conformou.

[silêncio]

- mas eu, meu bem, desisti de te esquecer. é uma luta vã. aceitei de vez que não dá pra te tirar do peito. e que tem amor que, mesmo sem viver, é pra levar pra sempre. - Alfa diz como quem recita um poema

Beta a fita com os olhos embaçados pela água que insiste em brotar. 

- você não pode me amar. 

- e por que?

- porque não faz sentido. todo esse tempo...

- tempo é relativo. 

- pareceu uma eternidade.

- pra mim também.

Alfa estende os dedos com medo de tocar a pele fria de Beta. Encosta tão leve como quem troca um fio desencapado, mas Beta entrelaça os dedos nos seus, tentando segurar algo que deixou pelo caminho. Se olham em total silêncio, se decifram, e sabem que, por tão imensa que seja a mágoa, o amor é bicho teimoso - sempre arruma um jeito de dar as caras. 

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Back to Beta

(Para ler ao som de Kings of Leon – Only By The Night)

Este conto possui referências de um passado partido.

I -

Muitos anos tinham se passado desde que Beta havia cruzado a porta da casa de Alfa. Lembra-se perfeitamente daquele dia: o medo, o peito em chamas, a lágrima que brota no olho. Não olhou para trás, porque olhar a faria ficar. Não ficou.

Anda agora por essas ruas cinzentas, entre amores banais, conversas triviais, cervejas que esquentam, cigarros queimando a ponta do dedo. É verdade, lembra de Alfa dizendo sobre seus olhos. Turmalina. O que Alfa pensaria se soubesse que comprou turmalinas para enfeitar a sala? Como alguém que guarde um pedaço de um passado partido.

Noite quente no Rio de Janeiro. Caminha com seu jeans rasgado, a regata básica, o vento que bate no rosto – mas não refresca. Senta-se na praia de Botafogo com um vinho de mercado nas mãos. Olha ao redor: casais que andam abraçados, cachorros correndo, pessoas que tomam banho. Por um segundo ri de si mesma pensando na coragem de quem se banha em água suja, mas se detém, lembra que também se banhou em águas assim muito duvidosas.

Acende um cigarro. Pensa em Alfa. O que estaria fazendo agora? Não, Alfa não pensa nela. Beta continua agarrada nessas certezas falhas. Não, não tem por quê. O tempo apaga. Ou tira do foco da memória? Não importa.

Bebe um gole do vinho barato. Seus olhos correm pela praia noturna e param em uma silhueta conhecida. Alfa está parada com os amigos, conversando, rindo, bebendo seu copo de vodka. Os lábios vermelhos. Beta desce o olhar para suas unhas: também vermelha, como no encontro em algum lugar do passado.

O coração em descompasso, a fumaça o cigarro que não chega a garganta. Não, não poderia ser. Mas é. Olha de novo para Alfa e seu rosto límpido, muito diferente do dia da despedida. O que fazer agora? Quer correr em direção a Alfa, olhar de perto, perguntar qualquer besteira para ouvir a voz sair daqueles lábios. Quer ir embora, largar tudo, fugir. Está presa na atmosfera do medo.

Alfa se vira lentamente e seus olhos cruzam os de Beta. Choque, explosão, boca seca. O copo que cai da mão de Alfa, que pendura quase de forma estúpida. Caminha devagar em direção a Beta que pensa ter mais de um coração pulsando no peito.

Alfa se senta na areia gelada, olhando para frente.

- ironia do destino. – diz, sarcástica

- ironia ou destino?

[silencio]

- como anda a vida? – pergunta Beta, desajeitada.

- tudo bem, tudo fluindo. Vamos levando, não?

- é, vamos sim.

- e você?

- bem, claro.

Alfa pega o vinho da mão de Beta

- você agora bebe essa porcaria?

- era o que o dinheiro dava. Com certeza melhor que vodka.

- ah, as certezas...

- não comece, Alfa.

- não precisa se fechar como um porco-espinho, não estou te julgando.

- você sempre esteve.

- eu tinha algumas razões.

- você não sabe de nada.

- você não me dizia.

- tem coisa que não precisa ser dita.

- o óbvio também precisa ser dito.

[silencio]

A mágoa que se dissipa no ar é levada pelo vento. Os corações ritmados. Elas sabem, mas fingem que não.

- meus amigos vão beber num bar aqui perto. Você quer ir? – pergunta Alfa, olhando dentro das retinas turmalinas.

- não sei se seria ideal...

- é só uma cerveja, Beta. Não crie histórias.

Beta franze a testa. Pensa em revidar, mas desiste. Concorda em ir.

Ao chegar na roda, os amigos de Alfa olham para Beta como quem encontra um fantasma vagando. Lembram das noites mal dormidas de Alfa, seus choros, suas garrafas vazias, aquele vinil do Chico que demorou um ano para tocar de novo. Mas não dizem nada. Caminham entre toques, abraços, risadas. Beta vai um pouco atrás, as mãos dentro dos bolsos da calça, quando Alfa vira e os cabelos invadem o rosto, que ela tira com a ponta dos dedos, sorrindo. Gravou na memória aquele momento. As luzes da cidade tão ofuscadas. Pensou ter passado, mas o amor se tornou apenas um pássaro preso em uma gaiola, ansiando agora pela liberdade.

 

II –

Chegam ao bar na Voluntários da Pátria. O barulho das garrafas, das vozes, dos beijos. Vulcão de emoções de uma cidade ativa, em erupção. Escolhem um mais ou menos vazio, puxam uma mesa. Alfa se senta de frente para Beta, que falha nas tentativas de evitar o encontro dos olhares. Logo ela, tão dona de si, tão firme, e agora tão menina. É chamada para a realidade quando a cerveja chega. Bebe o primeiro copo de uma vez, causando risada em Alfa.

- está nervosa? – pergunta rindo

- não, com sede. – responde ríspida, pensando que esse papel é ridículo.

Os olhos agora demoram. Acha estranhíssima essa veracidade que escapa de Alfa.

- me conte da sua vida. – Alfa pergunta com interesse

- o de sempre. Trabalhando, andando pelos bares, conhecendo essa gente chata.

- e o coração?

O copo repousa rente aos lábios de Beta. Como poderia responder essa pergunta?  Queria dizer que ainda a ama, é verdade. Talvez agora mais do que antes. Mas não diz. O medo da resposta cala o sentimento novo-antigo.

- batendo. – responde acendendo um cigarro.

- ora, isso eu sei. Quero saber se você se apaixonou. – Alfa insiste, talvez no fundo soubesse a resposta.

- não. Você?

Alfa sorri como criança satisfeita. Beta pensa que deveria ter mentido e dito que sim. Que dividiu camas incontáveis, que já não lembra mais dos dedos de Alfa pelo seu corpo.

- você está diferente. – constata

- ainda bem... não poderia mais ser a mesma desde que você...

[silencio]

- desde que eu fui embora.

[silencio]

- você guarda mágoas demais. – diz Alfa, puxando um cigarro do maço amassado.

- pode ser.

- é preciso perdoar.

- não sou boa em perdoar.

- os outros ou a si?

Alfa agora a fita séria. Beta a olha de volta na mesma seriedade.

- comprei turmalinas para enfeitar a sala. – diz Beta, puxando o cigarro dos lábios de alfa.

- joguei todas as minhas fora.

A fumaça deixa turva a visão entre as duas.

- pelo menos das turmalinas você gosta.

- o que quer dizer?

- sabe exatamente o que quero dizer, Beta.

- mas também gosto de ti.

Alfa dá um gole na cerveja enquanto solta uma risada desacreditada. Pensa que quem gosta não parte, mas sabe que não é verdade. Não totalmente.

As horas se passam entre olhares atentos. Mãos que se esbarram. Conversas entre amigos que Beta desconhece, mas sorri, como coadjuvante. Gosta mesmo da risada de Alfa.  Tão leve, segura. Não é mais a menina assustada a quem ofereceu um isqueiro na Lapa.

Alfa se levanta olhando para Beta.

- preciso ir, amanhã tenho um dia cheio.

- sim, eu também vou.

- quer carona?

- você vai dirigir?

- não, vou chamar um uber. Coloco duas paradas.

- coloque uma. Precisamos conversar.

A certeza que cobria Alfa se esvai. Vê-se novamente menina assustada. Pensou ter controle dos sentimentos, mas não tem. Pensou encontrar Beta tantas e tantas vezes, por ruas que não precisava andar. A vida brinca mesmo com a gente, pensa.

- eu pensei em te ligar algumas vezes. – Alfa diz mexendo no telefone

- eu não tenho mais seu número.

- imaginei. Você é boa em fugir.

Beta respira fundo. Não fugiu. Fez o que era necessário. Precisava estancar. Ou tentar.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

505

 [Para ouvir ao som de 505 - Arctic Monkeys]

I -

Gama desembarca em São Paulo na tarde de uma quinta-feira chuvosa. Pensa que deveria ter trazido o guarda-chuva, mas é grande, incomoda, um porre. Melhor mesmo se molhar.

Observa por baixo da marquise da porta central do aeroporto a água que cai sob a cidade cinza.  Pensa que gosta, com certa melancolia. São Paulo chove como ela por dentro.

Leva as mãos geladas a boca e acende o cigarro. As mãos tremem, mas não do frio. Não da chuva. Tremem como crianças nervosas em território amigavelmente desconhecido.

Tremem e pensa em Delta. O que estaria fazendo agora? Em um restaurante? No escritório? Fumando e observando a chuva como ela agora o faz? Não, não tem como saber. Difícil penetrar na névoa que encobre Delta com suas músicas, palavras não ditas, unhas pintadas, lábios rosados. Pensa nos dentes de Delta sob o lábio rosado, mas é chamada para a realidade:

- a senhora precisa de um táxi?

- como?

- um táxi. A senhora precisa?

Diz o funcionário que amigavelmente aponta para o carro branco. Responde que sim, obrigada, tudo bem, sorri com gentileza. Sobe novamente os olhos para a imensidão de São Paulo e sente o coração pulsar.

Dentro do carro troca algumas palavras com o motorista que a diz que veio numa semana ruim, vai chover até segunda, disse no jornal. Pensa que talvez prefira a cidade assim, nublada e chuvosa, em mistérios que não existem, mas que ela cultiva. Sim, claro, no Jardins. Ótima localização. Perto de tudo. Tudo o que?

Abre um pouco a janela. Gosta do vento frio que corta o rosto.

Desce a mão para o bolso da jaqueta e retira o celular. Digita e apaga três vezes a mensagem. Estou-aqui. Não, não.

Cheguei-em-são-Paulo. Não, também não.

Vim-para-te-ver. Nessa pondera, mas desiste.

Por fim, manda um “já estou em São Paulo”. A resposta é rápida: o que faremos hoje?

O-que-faremos-hoje... Ecoa na cabeça de Gama. Tantas coisas que queria fazer, dizer.

Sobe os olhos para a janela e vê um sol tímido despertar no céu. Pensa que Delta com certeza tem ligação com isso, embora não faça o mínimo sentido. Ri sozinha no banco de trás por associar Delta ao sol. Ela diria que estou romantizando, pensa. Ri como menina presa em ilusões.

Guarda o celular no bolso. Chegou ao apartamento. Hora de encarar a cidade voraz que devora seu peito há tanto tempo.

 

 

 

II –

Chuva que cai bate na janela da varanda. Larga a mala no canto da sala, acende o cigarro. Responde a mensagem dizendo que qualquer coisa, qualquer lugar. Não que tanto faça, o que importa mesmo é cruzar aqueles olhos. Paulista, Consolação, Augusta. Uma cerveja, um vinho. Como será a sensação de cruzar essas ruas conhecidas ao lado de Delta? Coração em descompasso.

Marcam as 19h em um bar. Casual, pensa. O relógio bate as 17h. Duas horas de longa eternidade e diálogos mentais. Inúteis, bem sabe. Não há como planejar ou saber. Tantas palavras, por tantos anos, que vão se dissipar ao momento do encontro. Não saber o que esperar assusta, mas atiça.

Deixa a água quente brincar pelo corpo. Escolhe uma roupa, sempre tão inadequada, e sai com a emoção quase infantil de terror e euforia.

Cruza agora uma São Paulo iluminada e vibrante. Cores que atingem a retina como um tiro de festim.

Ao chegar no bar espera dentro do carro. Ouve o motorista dizer que chegou, é aqui. Sim, sabe que é. Sabe que descer e bater essa porta muda o rumo de sua vida – de Delta já não sabe. Reúne em si a coragem e sai, abandonando as ilusões criadas.

Enquanto anda em direção ao bar pensa num conto de Caio Fernando. Alguém que caminha pela chuva com uma garrafa de conhaque, ou vinho, já não lembra mais, e um maço de cigarro amassado. Queria ter algo nas mãos. Os olhos percorrem o lugar: ninguém. Senta-se, pede uma cerveja, acende um cigarro. Não há medo que há faça ir embora dali.

Delta chega com toda sua delicadeza bruta e puxa a cadeira. Por alguns segundos Gama se perde em devaneios, mas levanta o rosto e lhe sorri.

- mas já está bebendo?

- ah, sim. Uma cerveja só.

- tudo bem, te acompanho.

Aqueles olhos tão escuros. As unhas pintadas de forma perfeita. O cigarro entre os dedos longos. Gama a observa como quem guarda uma pintura mental – não poderia esquecer.

- como foi seu voo?

- foi ótimo. E o trabalho?

Delta abre o leque sobre o dia. Tantas informações, personagens, termos que desconhece. Escuta atenciosamente como quem procura aprender. Não existe nada em volta. Não há mais ninguém ali. Estão as duas sob o céu cinza e a fumaça do cigarro.

- ah, merda...

- o que foi? – responde Gama confusa, voltando do quadro que pintava.

- esqueci de comprar cigarros.

- fuma o meu.

Gama estica a mão sorrindo. O dedo que esbarra no seu. Pensa que é um tanto quanto infantil essa sensação. Observa Delta tragar o cigarro entre os lábios rosados.

- o que foi? – pergunta enquanto franze a testa.

- o que foi o que?

- por que tá me olhando assim?

- ora, nada. Estou te olhando, você está de frente pra mim. É natural.

- se você diz...

Gama queria ser o cigarro. Ser tragada. Apreciada. Queria a sensação daqueles lábios em sua pele. Queria dizer que sim, a esperou e imaginou em muitos bares como esse. Que bebeu e fumou em sua espera, em silêncio. Que a amou tantas e tantas vezes por ruas que já não lembra o nome. Mas não diz. Se concentra nas histórias de Delta.

As horas que se passam. As garrafas que se esvaziam. Os maços que terminam.

- faz muito frio nessa cidade. – diz Gama, com as mãos em volta do copo

- hoje tá um tempo gostoso.

- faz muito frio.

Delta ri do exagero. Puxa a cadeira pra mais perto, diz que se sentando junto esquenta. O coração de Gama acelera sem o mínimo controle. Agora consegue sentir o perfume misturado ao tabaco.

III –

Quantas vezes sonhou ter Delta ali? A primeira vez que a amou era ainda criança, nada sabia. Seria Delta uma fantasia?

É chamada para a realidade quando os dedos de Delta invadem seu pescoço frio. Fita aqueles olhos de perto.

- não achei que viesse – diz Delta, com suas certezas erradas.

- sempre quis estar aqui.

- e fugiu tantas vezes.

- o medo destrói.

- de mim?

[silencio]

Não. Não tem medo de Delta e seus dedos longos. Tem medo desse amor descompassado, guardado, que tanto tentou diluir e falhou.

Os lábios de Delta encontram os seus, ressecados pelo vento, pela chuva, pelas esperas. Sente a língua áspera de Delta na sua. Explosão.

Prefere não abrir os olhos no final. Sonho que termina. Não, quer estar ali, presa para sempre naquele momento, naqueles lábios, no desejo que se conclui. Nunca se julgou tão desejável como agora. Se pudesse escolher entre todos as memórias, guardaria a voz de Delta, seus olhos.

- tá tudo bem? – Delta pergunta acendendo um cigarro.

- sim, tudo.

- não gostou?

- sempre.

- do beijo?

- de ti.

[silencio]

Passa tantos dias ao lado de Delta. Cafeterias, restaurantes, vinhos, cigarros, risadas, beijos, toques, desejo. Queria atravessá-la e ficar por dentro. Quente e segura. Criança assustada que é, mas finge bem.

São Paulo engole. Devora. Delta é São Paulo em todas as esquinas. Confusa, bonita, caótica, imensa. Esplêndida. A maneira que franze a testa ao discordar. A curva rígida do pescoço. Detalhes que o tempo não apaga. Mas lembra de algo que escreveu: tudo é eterno no desejo, as pessoas não.

As brigas, as diferenças, os silêncios. Não conseguir explicar, falar, mostrar. Palavras que não cabem no peito. A desordem que chega, e tira tudo do lugar.

IV -

A hora da partida é cruel para quem quer ficar. É verdade, ficaria. Ficaria sempre. Moraria naqueles olhos, mas não pode. Não se fica com alguém que quer ir.

A água salgada que corta o rosto até a boca e parte o beijo. Não, não quer ir. Quer espernear, pedir para ficar, implorar – mas não pode. Não poderia aceitar além daquilo que vem tão leve e natural, como as lágrimas.

Entra no táxi. Respira fundo. É preciso voltar a realidade. Em silêncio, cruza uma cidade inteira que grita. O peito ardendo, o sexo em brasa, a saudade latente. Não se sabe o que acontece quando se vira a esquina. Amará para sempre? A esquecerá? Não. Esquecer jamais.

Pensa que queria ser como Delta e pensar menos. Se importar menos? Não sabe. O silêncio diz coisas enganosas.

Senta-se no saguão do aeroporto. Retira o caderno amassado. Escreve uma carta para jamais ser mandada:

“Da primeira vez que te amei, meu peito inflou. Tive medo, é verdade. Me assustei como criança que olha para algo brilhante. Vi meu rosto refletido em mil pedaços. Durante os anos, lutei a fio para te apagar – é impossível, sei bem. Noites inteiras varei com tua voz ecoando em minha cabeça, um vinho nas mãos, um cigarro. Te procurei em tantos corpos e não achei. Quis por muitas vezes te encontrar casualmente, como se o destino jogasse a nosso favor. Não que ele não goste da gente, talvez só esteja cansado desses erros teus, meus, nossos. Eu te amei como se não houvesse no mundo nenhum olhar além do teu. Quis te ligar várias vezes só hoje. Que lugar é esse que você se esconde tão dentro de si? Sabe, eu não queria que ficasse de mim apenas a mágoa, a dor, o orgulho. Eu nunca desejei o fim. Eu cruzaria oceanos se você dissesse que fica. Eu remaria noites adentro sem descanso. O que importaria era chegar. Queria te perguntar por que você vai. Eu aqui, nua, exposta, tão eu, sem segredos, jogos ou mentiras. Quebrei suas expectativas? Talvez não tenha sido suficiente para manter suas ilusões. Talvez a ideia de mim tenha sido mais bonita do que eu. Você não me lê. Você não me olha. Não me escuta. Mas ainda assim, te escreverei por tantos anos em noites como essa. Te farei poemas, contos, versos. Me pegarei sorrindo no meio de uma frase sua. Mas você não vai aparecer no meio de uma tarde dizendo meu-deus-como-senti-saudade-de-ti. Você, constelação em choque, cometa a cruzar pelo meu céu. Sabe, algumas vezes eu me fiz de distraída, mas eu me lembro tudo que me disse. Eu sei, você não gosta de despedidas, embora tenha ficado experiente nelas. Sabe, eu tenho medo de te esbarrar de novo e meu coração descompensar. Eu não quero ir, mas vou. Como um destino traçado, fado que não posso fugir. Com um coração tão teu.”

Olha pela última vez o celular – nada.

Se aproxima da janela. Joga o papel pelo vento.

Não atingirá Delta, sabe bem. Mas quem sabe suas palavras voem soltas pelo céu de São Paulo.

O amanhã ninguém sabe. E chove.

Lá fora, mas aqui dentro é tempestade.

terça-feira, 19 de maio de 2020

A tempestade dos teus olhos castanhos

(continuação)


Alfa puxa o celular que havia esquecido ter. Abre o aplicativo com a mão trêmula. Será que fez bem em chamar para sua casa? O que Beta pensaria se dissesse que mudou de ideia? Sairia como alguém que foge? Mas, de fato, fugiu a vida inteira. Pensa de novo em Caio Fernando: sossega que o amor não é pro teu bico. Amor? Escreve o endereço, chama, 3 minutos. Três mais longos minutos. Beta acende o cigarro e desgasta o que restou do batom deixado: marca de uma quase-vida. Sua boca é avermelhada por natureza. O carro se aproxima, o cigarro é apagado na parede, as mãos de Alfa continuam trêmulas.
Dentro do carro, observa como uma criança: os cabelos de Beta voam com o vento, os olhos brilham. Repara na mão que repousa sobre a coxa: anéis de prata de diferentes desenhos. Sobe o olhar: uma frase de música tatuada na parte de trás do braço. Se esforça, mas a falta de luz não permite ler. Como em um estudo, permanece o percurso, ao chegar na curva do rosto. Forte, preciso, assim como suas palavras. Tudo em Beta parece queimar. No rádio, Caetano. De novo.  A bruta flor do querer. E quer, quer muito Beta em sua cama, na vida, entre os livros que adora. Não sabe se dói, mas arde.
Ao chegar, apressa o passo para chamar o elevador. Tudo fora de controle. Mal sabe de si. Por que a olha assim? O que quer? Qual tipo de jogo estão jogando? Não gosta de jogos. Sempre perde. Abre a porta do apartamento e diz como quem reproduz no automático para não-reparar-a-bagunça. Beta passa a ponta dos dedos pela mesa da sala, encontra um livro. Leite Derramado.
- acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus. – diz Beta com sua voz firme.
Alfa congela, parada no meio da sua sala de luz branca.
- o livro do Chico. – diz Beta, segurando com uma mão enquanto ri.
- ah, sim... o livro.
[silêncio].
Alfa caminha até a cozinha para pegar uma bebida. Abre a geladeira. Cerveja, vodka, vinho. Para impressionar, opta pela cerveja. Apenas um copo, prefere beber no gargalho, como quem afoga todas as palavras presas na garganta.
Ao retornar encontra Beta sentada em seu sofá, fumando um cigarro. O olhar distante. A luz reflete no anel. O que estaria pensando? Será que também tem palavras na garganta para afogar? Entrega o copo cheio, e brinda. Não há mais distância segura. Apenas um gesto poderia mudar todo o destino da noite, da vida. Bebe, mas as palavras são sobreviventes.
- seus olhos parecem turmalinas.
- como a pedra? – Beta franze a sobrancelha.
- sim. Como a pedra.
- turmalinas repelem as energias negativas. Você é meio esotérica. Palavra estranha, não? E-s-o-t-é-r-i-c-a.
- não sou. Entendo pouco. Gosto da pedra, apenas.
- e do beijo?
[silêncio]
Mais uma vez se sente devorada pela boca de Beta, que apoia o copo no chão e desliza os dedos sobre sua carne. Represa sem controle. Águas que invadem sem pedir permissão. Dedos sob a água quente. Explosão de vida. Deseja atravessar Beta e morar por suas entranhas. Adora, como nunca, aqueles dentes sob o lábio inferior. Olhos de turmalina ofuscada, como quem busca alguma coisa, como quem chega em algum lugar: ao ápice.


(...)